quarta-feira, 15 de outubro de 2008

VISÃO!!!!

Quando tinha quatro anos, minha mãe veio para o Rio de Janeiro, deixando-me na Bahia com minha avó.Trouxe Rosana minha irmã mais velha para tentar resolver a vida e assim que tivesse condições de manter-se mandaria me buscar. Com o tempo passei a chamar minha avó de mãe.
Com quatro, já freqüentava a escola. E com minha prima fazia sempre o mesmo trajeto todos os dias. E foi em um desses retornos que sofri um acidente. Voltava da escola, quando minha prima e eu resolvemos passar na padaria. Na saída um rapaz que corria em sentido contrário derrubou-me, bati com a cabeça no meio fio e me machuquei toda. Cheguei em casa chorando e sangrando, minha avó sabendo que eu não era de chorar á toa, tratou de limpar-me para ver a gravidade da situação. Apesar de estar bem machucada, não havia nada que merecesse maior preocupação. Minha avó foi procurar o rapaz (em cidade pequena todos se conhecem) e ficou sabendo que na hora do acidente ele estava correndo atrás da irmã, para pegar uma manga. Acordei no dia seguinte com muita dor de cabeça e acabei por levar uma surra da minha avó. Percebendo que não era manha, colocou compressas de saião e mastruço em minha testa. Mas estava tão quente que acabaram por me queimar. Dois dias ainda passei com a cabeça doendo e no terceiro amanheci sem enxergar. Minha avó que não sabia reagir de outra forma tornou a me bater, por não conseguir compreender o que estava acontecendo. Achava que tinha que me punir.
Nos dois primeiros dias, ainda conseguia divisar alguns vultos, mas logo estava totalmente cega. A íris de meus olhos havia subido, o que a princípio me possibilitava enxergar, quando levantava as pupilas, mas aos poucos perdi também essa possibilidade, e logo estava totalmente ás escuras.
Minha avó e minhas tias entraram em completo desespero e me levaram ao médico, que me transferiu para Salvador, pois a cidade interiorana em que vivia não havia recursos. Mas antes ainda tentaram alguns tratamentos com remédios fortes, mas que não surtiram efeito. Em Salvador precisei ficar internada, submetida a uma bateria de exames e indagações, que ninguém sabia explicar. O resultado disso foram quatro meses de internação. Certo dia ouvi uma enorme confusão de vozes exaltadas no corredor, saí do quarto para "ver" o que estava acontecendo. Depois fiquei sabendo pelas enfermeiras que haviam se divertido com a situação, que minha querida e esquentada avó, havia segurado o médico pelo colarinho e encurralado-o na parede, precisando ser contida por outros funcionários. Quando pude conversar com minha avó, perguntei-lhe o que estava acontecendo, e ela me disse que eu sairia de lá, porquê o médico havia dito, que eu não teria cura, pois minha cegueira era de nascença.
Fiquei algum tempo em casa, até que dias depois a esposa de meu padrinho que trabalhava no hospital de clínicas de Salvador conseguiu uma internação para mim. Diariamente era submetida a uma bateria de exames por uma junta médica e apesar do esforço da equipe, não conseguiam achar uma causa clínica para o meu caso. O neurologista achou que o melhor seria a cirurgia e começou a preparação assim que conseguiu a autorização de minha avó, que era (nos termos de hoje) minha representante legal. Apesar das constantes tentativas de minha tia de escrever a minha mãe contando o que estava acontecendo, minha avó não permitiu. Não queria preocupa – la.
Fui levada a uma sala, onde iniciaram o corte de meu cabelo. Foi à primeira vez que chorei, desde que tudo começara. Tinha um cabelo enorme e cada mecha que caia era um soluço que saia de minha garganta. E foi só quando iniciaram a raspagem que pude perceber que o que sentia era medo. Naquela noite não quis conversar com ninguém e nem jantar. Nem mesmo o clínico geral que era alguém de quem gostava e confiava, conseguira melhorar meu ânimo. No dia seguinte pela manhã fui levada a uma sala onde fazia um frio horrível, havia várias pessoas a minha volta. Fizeram alguns rabiscos em minha careca, que eu não sabia o que eram e nem conseguia vê-los através do espelho que havia sobre mim. Uma injeção e logo todas aquelas pessoas tornaram-se apenas vultos, até a escuridão total. Voltei à enfermaria e permaneci tanto tempo naquele hospital que passei a agir como se lá fosse minha casa. Minha avó como um cão fiel, me visitava todo dia, já que nessa época não era permitido acompanhantes para internos, ainda que esses fossem crianças. A minha rotina baseava-se em ficar com a esposa de meu tio no setor de radiologia onde ele trabalhava, até que uma enfermeira durona fosse me buscar, levando-me dois andares de escadas puxando minhas orelhas. No início reclamei com minha avó, mas ela havia dado permissão a tal mulher para que agisse com o rigor que achasse necessário. Eu levada que era não deixava de ir à sala de minha "tia". Porém nunca entendi o porque de ninguém nunca ter tomado qualquer atitude diante de tais cenas da enfermeira.
Após o almoço, ajudava as enfermeiras do plantão a dar banhos nas crianças do setor de queimados. E era uma cena grotesca. Elas gritavam de dor à medida que as esponjas eram passadas em seus corpos, e aquelas que não suportavam a dor ou que as feridas eram muito graves, tomavam analgésicos. O que mais me impressionava era que quase todos eles estavam ali, com problemas causados por seus próprios pais e que raramente os visitavam. O que tornavam os funcionários do hospital, a verdadeira família da maioria deles. Após tomar meu próprio banho, era levada a sala dos médicos e acadêmicos para novos estudos, novas injeções e novos diagnósticos. Pediram ajuda de um psicólogo e de uma fisioterapeuta. A tranqüilidade e dedicação desses dois profissionais foram fundamentais a minha recuperação. Conhecia a todos no hospital, pelo nome. Era conhecida dos funcionários da limpeza ao diretor do hospital. Passados quase um ano de minha internação e já recuperada tive alta hospitalar, mas não do tratamento. Ao qual teria que me submeter uma vez por mês. No dia que tive alta da internação, fiquei sentada no alto da escada esperando minha avó, para contar-lhe a novidade. Mas quem chegou foi minha mãe.
Tinha vindo do Rio de Janeiro assim que soube do meu problema, mas não pôde ficar por muito tempo, pois deixara minha irmã mais velha com conhecidos. Apesar da minha pouca idade na época, lembro-me como se fosse hoje, desde o dia do tombo, até quando arrastei minha mãe pela mão, levando-a a todos os cantos do hospital para apresentá-la. E olha que era muita gente. Se cada lágrima derramada pelos funcionários com a minha partida era de saudades. Então eu deixei muita."
Durante um tempo, fiquei com um vácuo na mente sobre o que acontecera na cirurgia. Mas depois vim, a saber, que não havia sido feita. Após a alta ainda tive que me submeter aos relatórios e consultas por uns dois anos, que foi quando minha mãe mandou buscar-me para morar com ela.
E é exatamente por causa desse período que posso afirmar com certeza, que a deficiência visual abre inúmeras condições de você avaliar as pessoas pelo que são e não pelo que vêem. Até mesmo o ato de tocar as pessoas, coisa que fiz com freqüência nesse período, não serve para avaliar a estética de quem tocamos e sim de dar forma ao que ouvimos.

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Agora são Horas e Minutos - Seja Bem Vindo(a)
Escrevo sem pensar, tudo o que o meu inconsciente grita. Penso depois: não só para corrigir, mas para justificar o que escrevi.
(Mário de Andrade)