domingo, 13 de julho de 2008

Carta a um Amigo.





"Ainda que eu falasse a língua dos homens, que eu falasse a língua dos Anjos, eu nada seria".
Sempre que ouço isso, me dou conta de que nada somos e que nada seríamos mesmo que essa consciência se fizesse presente em nossas mentes e corações.
É esse o sentimento que tenho, no momento que penso em ti ,meu querido amigo.
Faz tempo que penso em lhe escrever, mas sempre esbarrava no depois, qualquer dia, outra hora. Mas hoje ao observar um arco-íris, decidi não mais adiar. Olhava esse arco-íris no portão de casa e foi quando vi alguém se aproximando com uma enorme bolsa, mais pesada que seu próprio corpo. Sorri lembrando de você, que de tão franzino parecia que iria quebrar com as bolsas que costumava carregar.Mas essa fragilidade aparente só servia para esconder a força e o temperamento radical.Com sorriso fácil, apesar de debochado, seu jeito alegre e descontraído contagiava a todos.
Sua lealdade e fidelidade aos amigos só não eram mais bonitas porque sabia ser implacável e extremamente rude com aqueles que por ventura cismasse. Não era raro vê-lo descobrindo inimigos, onde não existia.
Sempre que chega o carnaval, Natal, Reveillon, de quem eu lembro? De ti.
Não esqueço de que sempre que saíamos juntos, andávamos de mãos dadas, ato esse que não tenho sequer com meus irmãos.
Homossexual assumido apenas para os muito íntimos, era divertido vê-lo paquerando, discretamente, muito embora geralmente seu comportamento nesse sentido fosse irrepreensível. Também, vivendo em uma sociedade hipócrita, medíocre e especialmente preconceituosa, não tinha como ser diferente. Sei que não foi feliz no amor, sofreu, chorou, lutou com as armas que dispunha, mas não conseguiu. Nada que não se possa entender, pois amor é mesmo algo muito complicado.Mesmo para os denominados "normais".Ainda assim seguiu a vida, fingindo que o que tinha lhe bastava.
Sempre cercado de gente, querido pelos colegas de trabalho, dedicado a religião e principalmente aos familiares e amigos, para quem não media esforços para ajudar e estar ao lado em qualquer momento parecia o modelo do homem feliz.
Mas o tempo foi mostrando uma outra pessoa, triste, arredio, revoltado e solitário. Extremamente solitário.
O sorriso debochado ficou sarcástico, o olhar alegre ficou distante, o prazer em conviver com as pessoas transformou-se em sacrifício, o corpo sempre magro, mas cheio de disposição, encheu-se de feridas e o sentimento ao próximo virou revolta e desprezo. O por quê de tudo isso?
SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA, a tão temida AIDS.
O nome difícil não é a única coisa que assusta, mas também a dificuldade que a ciência e a medicina encontram para descobrir o que realmente pode aplacar o sofrimento dos que precisam conviver com ela.
Quando chegou? Não sei. Mas ainda assim você conseguiu conduzir seu caminho de forma corajosa e única, embora alguns tivessem denominado de egoísmo ou covardia.
A única coisa que posso garantir, é que não fiz parte dos que o criticaram por ter mantido algo tão sério em segredo. Sei o quanto seria difícil ver pessoas que sempre o admiraram olhando-o com medo ou quem sabe com desprezo. Penso que se fosse comigo teria adotado o mesmo comportamento, talvez fugir não fosse o melhor a fazer, mas quem sabe o que é melhor em uma hora dessas? poucas pessoas o entenderiam, sem deixar o preconceito se fazer presente.
Mas eu amigo estava sim, em meio aqueles que se culparam pela omissão e pela impotência. Omissão, por que não tinha como fingir não ver o que estava lhe acontecendo e impotência, porque enquanto você não se dispusesse a pedir ajudo eu não sabia o que fazer, sem invadir sua privacidade. Achou que ficando sozinho seria melhor, não precisaria fingir suas dores e dissabores.
É lógico que hoje só me resta pedir desculpas por ter compreendido tarde demais seu pedido silencioso de socorro. Sei exatamente o que é não saber expressar um pedido de ajuda. E é por isso que lhe escrevo hoje, para dizer-lhe que lembro nitidamente de seu abraço apertado e o choro convulsivo em meus braços em um sábado ensolarado, apesar do inverno de Agosto e da borboleta que entrou onze dias depois em minha sala e pairou no ar, diante de mim, batendo asas em um gesto de adeus.
Sei que sofreu para aceitar e que ainda hoje não encontrou a necessitada, embora não saiba se merecida paz.. Dia 8 de agosto de 2003 faz cinco anos que nos deixou, não lhe disse adeus na época e hoje não sinto mais saudades, pois sei que como diz uma linda canção que você gostava muito.
"Qualquer dia amigo, a gente vai se encontrar".

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Escrevo sem pensar, tudo o que o meu inconsciente grita. Penso depois: não só para corrigir, mas para justificar o que escrevi.
(Mário de Andrade)